“Os mortos
continuam a agir para além da morte. Os cadáveres se dissolvem, mas as obras
que eles criaram, as instituições que animaram, as ideias que lançaram ao
mundo, os afetos que suscitaram continuam a agir e a fermentar. Quando um corpo
volta ao nada, a consciência segue um destino social entre os vivos.” (Jean
Ziegler)
Os direitos de personalidade
gozam de proteção depois da morte do respetivo titular (art.º 71.º n.º 1, do
Código Civil).
Na verdade, a morte, não impede
que os bens da personalidade física e moral do defunto possam influir no curso
social e que perdurem no mundo das relações jurídicas e sejam como tais
autonomamente protegidos. É o caso das partes destacadas do corpo, das
disposições de última vontade, de sua identidade, da imagem, da honra, do seu
bom nome, da sua vida privada, das suas obras e das demais objetivações criadas
pelo defunto e nas quais ele tenha, de um modo muito especial, imprimido sua
marca.
O fato de a pessoa já ter
falecido não confere à liberdade de expressão um valor absoluto em detrimento
de bens vinculados à honra de um indivíduo. O mesmo tratamento conferido à
liberdade de expressão quando se está diante de uma pessoa viva deve ser
conferido aqueles já falecidos, os quais possuem seus direitos da personalidade
tutelados por terceiros legitimados.
A Constituição da República
Portuguesa acolhe a tutela da personalidade que pode ser encontrada no
princípio fundamental da Dignidade da
pessoa humana (art.º 1º).
Dignidade é tudo aquilo que não tem preço, segundo a
conhecida formulação de Kant – “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” –
[tradução de Paulo Quintela, 1986, p. 77].
Nessa obra procura-se distinguir
aquilo que tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, daquilo que é dotado
de dignidade – do que é inestimável, do que é indisponível, do que não pode ser
objeto de troca.
Afirma-se lapidarmente:
“No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma
coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente;
mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite
equivalente, então tem ela tem dignidade.”.
Dignidade é pois o que falta a
alguns líderes e dirigentes partidários da direita e também a algumas direções
e redações de jornais e jornalistas, no tratamento da tragédia de Pedrogão
Grande e da inenarrável e indecorosa contabilidade nominal das vítimas desta
tragédia.
Hoje, televisões e jornais
digladiam-se diariamente, para incluir uma nova vítima às vítimas anunciadas
pelas autoridades competentes. Hoje, qualquer funerária em colaboração estreita
com os jornais e tv’s, adita mais umas quantas vítimas ao rol da tragédia, com
a característica bem portuguesa de “pelas suas contas” e “pelo que ouviu
dizer”, os números têm de ser maiores que os apontados.
Esta miséria humana que pulula
nas tv’s e jornais, demonstra total falta de respeito para com as vítimas e as
famílias das vítimas, e pratica agressões diárias para com elas criando um
estado de ansiedade e um sentimento de grande instabilidade e receio, pelas
atoardas diariamente cuspidas de petróleo para a “fogueira das vaidades” em que
estas marionetas se movem e se apresentam.
Pouco importa se esses nomes
podem ou não ser revelados nesta fase ou se isso ainda atormenta mais os
familiares e amigos dos falecidos. Pouco importa! Estes abutres da comunicação
social e os seus amigos urubus da política de direita, alimentam-se diariamente
dos mortos de Pedrogão Grande e rapam furiosamente os outros incêndios para
saciar a animalidade necrófaga que os caracteriza.
“Diante desta massiva violação de direitos humanos, que inunda o país
com conceções de cidadãos descartáveis e cadáveres indignos, sejamos como
Antígona, que, a despeito das ordens de forças autoritárias maiores,
posicionou-se contra o desprezo pela dignidade do outro e a complacência de uma
sociedade espectadora, já acostumada com corpos descartáveis.
E que, amanhã, oxalá, haja alguma Antígona por nós…!
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