quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Delação Premiada – “… a legalização (parcial) da corrupção.”


Não posso estar mais de acordo. A chamada “delação premiada”, não é mais de que um ato de corrupção, praticado pelo Estado, através do Ministério Público (MP). Como sugere, e bem, o Juiz Jubilado Noronha do Nascimento ([1]), “… na delação premiada o investigador promete ao arguido que, se este contar a versão que de outro modo não contaria, o liberta de qualquer punição ou lhe reduz a pena. Em condições normais, isto é corrupção: o investigador tira vantagem em obter uma prova que de outro modo não obteria, e o delator tira vantagem ao ser absolvido (ou sofrendo uma pena menor) por um crime que cometeu. Daí que a delação premiada seja, verdadeiramente, uma corrupção legalizada – e legalizada pelo tribunal.
Mas o problema maior surge quando o delator conta uma versão falseada que interessa ao investigador ou que interessa a si mesmo para salvar a sua pele.”

Vem este tema a propósito do anúncio feito pela Ministra da Justiça, no passado dia 09/12/2019, que o Governo tinha criado um grupo de trabalho com o objetivo central de estudar novas ferramentas para reforçar a investigação, no combate a corrupção, reduzindo os trâmites judiciais e os megaprocessos, com a criação de juízos especiais para julgar corrupção e crimes conexos, a possibilidade de os arguidos fazerem acordos em julgamento e melhorar a lei sobre o direito premial são algumas das intenções do Governo para a área da justiça.

Este meritório impulso do Governo, na área da justiça, designadamente, instituindo uma estratégia nacional de combate à corrupção, com "uma forte dimensão preventiva”, mereceu no entanto uma atenção exagerada (pressão?), sobre a chamada “delação premiada”, muitos pretendendo a sua ‘brasileirização’ no sistema jurídico-penal português. É claro, que a Ministra da Justiça já se tinha pronunciado sobre esta matéria, se calhar antevendo a “veia” justicialista que se iria fazer ouvir. Disse a Ministra a propósito: “A delação premiada é uma realidade que existe em determinados países. Portugal não tem propriamente o mesmo histórico e tradições jurídicas. Nós temos instrumentos próprios e iremos trabalhar os nossos instrumentos”.

Acertadamente o fez. Na verdade, num país de tradição pidesca é certo e sabido que a mais leve abertura a esta ferramenta, com os contornos que existem no Brasil ou mesmo a figura próxima nos Estados Unidos (“plea bargain”), enchem de “coragem“ os “bufos”, que por herança ou vocação própria povoam o nosso dia-a-dia.

Aliás, na maior parte da Europa (com algumas exceções, como a Itália e a Inglaterra) não existem muitas políticas que incentivam a delação premiada. Isso porque os países europeus buscam outros meios formais para descobrir fraudes, sem precisarem utilizar a delação. Portugal, nesta matéria, tem seguido o exemplo da maioria.

É claro que para alguns sectores do Ministério Público Português (MP), mais dados à “judicialização da política”, a ideia da delação premiada os seduz (sobretudo em processos mediáticos), por estarem convencidos que, no momento da acusação, a delação premiada terá permitido reunir indícios suficientes que permitam sustentar que a condenação em julgamento é mais provável do que a absolvição, dando-lhes por isso, uma aparente, sensação de vitória.

O problema é que as grandes delações que criam a ilusão de uma grande condenação são as mesmas delações que podem dar lugar a grandes absolvições, quer por assentarem em verdadeiros negócios com delatores que praticaram crimes e cuja credibilidade está necessariamente abalada, quer por força de invalidades na forma como a prova foi obtida.

O exemplo brasileiro é tão negativamente vivo e presente que, só por si, serviria de repulsa à utilização desta ferramenta, no sistema jurídico-penal português.

Nós não temos inscrito no nosso sistema jurídico-penal esta figura da delação premiada. Porém, embora, o Código Penal Português, na sua Parte Geral, cuide da atenuação geral e especial da medida da pena, dando nomeadamente relevância legal ao arrependimento, não se pode afirmar que estamos no âmbito de um verdadeiro direito premial. A verdadeira premiação surge sim, no entanto, na Parte Especial do Código Penal, nos artigos (i) 368º-A (que pune o crime de branqueamento, prevê uma atenuação especial da pena, no nº7 e n.º 9, do mesmo artigo), (ii) o artigo 374º-B (que trata da dispensa e atenuação da pena no âmbito do crime de corrupção e recebimento indevido de vantagens); (iii) na Lei 52/20003, de 22 de Agosto (Lei de combate ao terrorismo, que prevê no seu artigo 2º nº5, artigo 3º nº2 e artigo 4º nº3 uma atenuação especial da pena quando o agente abandonar voluntariamente a sua atividade ou auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis); e (iv) no Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro (prevê uma especial atenuação da pena ao agente que abandonar voluntariamente a sua atividade, ou auxiliar concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros).

Que as mudanças que vierem a ser propostas no direito premial para combater a corrupção não alterem o atual modelo penal, é uma garantia que deve ser reconfirmada.





[1] LUÍS NORONHA NASCIMENTO, Juiz jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, Blogue “Aspirina B”, de 12-05-2018

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