quinta-feira, 18 de julho de 2019

“TURBATIO SANGUINIS” (Confusão de Sangue)



Os deputados aprovaram no passado dia 11/07/2019, em votação na especialidade na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, o fim do prazo imposto pela lei para casar segunda vez, após um divórcio ou viuvez. Assim, a partir da entrada em vigor da nova lei, vai ser possível casar logo após o divórcio. A proposta aprovada teve os votos favoráveis do PS, do BE, do PAN, do PSD e do PCP. O CDS votou contra.

O prazo internupcial atualmente previsto no Código Civil (art.º 1605.º) impede o segundo casamento num prazo de cento e oitenta dias após o divórcio ou viuvez, no caso dos homens, e de trezentos dias no caso das mulheres (180 dias se apresentarem um atestado médico em como não estão grávidas), uma disposição que consta da lei desde 1966.

Os prazos internupciais consagrados no nosso ordenamento jurídico são um impedimento impediente, o que significa que para que o segundo casamento se possa realizar tem de ser respeitado um determinado período de tempo. Assim, qualquer um dos cônjuges que viu o seu casamento dissolvido por morte ou divórcio, declarado nulo ou anulável, tem de respeitar um prazo legal antes de ser autorizado a celebrar um novo casamento. Contudo este é diferente entre homem e mulher, como se viu: ao primeiro aplica-se um prazo de cento e oitenta dias, à segunda de trezentos – arts. 1605º, nº 1 do Código Civil e 1604º, al. b), do mesmo Código

As razões que o sustentam são essencialmente duas: em primeiro o “tempus lugendi”, ou seja, um período de “luto” de cento e oitenta dias que a lei impõe a ambos os cônjuges para fazer respeitar o que se pensem ser as convenções sociais e em segundo a pretensão de evitar a “turbatio sanguinis”, ou seja, as dúvidas que poderiam suscitar-se sobre a paternidade de um filho nascido depois do segundo casamento.

Ora, os deputados, tendo em conta toda a evolução histórica, social e legislativa já vivida no nosso ordenamento, por maioria qualificada puseram fim ao referido prazo internupcial, permitindo umas segundas núpcias a qualquer um dos cônjuges que viu o seu casamento dissolvido por morte ou divórcio, declarado nulo ou anulável.

Competindo ao Estado regular todos os aspetos relacionados com a proteção da família, enquanto elemento fundamental da sociedade contemporânea (art.º 67.º, n.º 2, da CRP), essencial seria que se resolvessem as distorções constitucionais que o prazo internupcial, inevitavelmente, ia criando.

Na verdade, o prazo internupcial sempre suscitou a dúvida se não colidiria com os princípios constitucionais, como sejam a igualdade dos cidadãos, o direito a celebrar casamento e até mesmo o direito a constituir família, princípios que aparentam estar de certo modo “abalados” pela essência e pelo resultado deste prazo. O instituto da filiação, o modo de estabelecimento da paternidade, o momento da conceção, o tempo de duração máxima e mínima da gravidez, a impugnação da paternidade e até os meios de prova admitidos na investigação da mesma, são todos eles, e a sua utilidade prática, postos em causa com a existência do prazo internupcial.

Por sua vez, o artigo 26.°, N.º 1 da Lei Fundamental garante a todos os cidadãos o direito à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. E o n.º 1 do artigo 36,°, é claro ao afirmar que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.

Nesse sentido, o prazo internupcial, tal como está hoje estabelecido no Código Civil, parece não respeitar, de todo, aqueles preceitos constitucionais, porquanto permite aplicação de um prazo mais dilatado para as mulheres e com consequentes consequências quando desrespeitado. Tudo em situações em que não são justificáveis e que parecem apenas se encontrar explicação numa forma de discriminação em função do sexo. O que é igualmente violador do princípio da igualdade, artigo 13.º da Constituição.

Por tudo isto, Portugal venceu mais uma barreira na luta pela igualdade de direitos e de tratamento entre mulheres e homens e, como alguns assinalam, Portugal chegou finalmente, também neste capítulo, ao século XXI, já que estávamos 38 anos atrasados em relação a Espanha e 14 relativamente a França.

Não fazia qualquer sentido manter um prazo internupcial que permitia aos homens voltarem a casar-se imediatamente a seguir a um divórcio mas obrigavam a mulher a esperar 300 dias para o fazer. Uma regra baseada numa visão paternalista e patriarcal das mulheres, que lançava uma constante suspeição sobre elas e que lhes limitava a liberdade e a autodeterminação, no dizer de Sandra Cunha, deputada do BE e autora do projeto-lei.


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