sexta-feira, 25 de maio de 2018

O Instigador de Alcochete



Dez dias depois de um grupo ter invadido a Academia do Sporting, em Alcochete, e agredido futebolistas e equipa técnica do clube de Alvalade, ainda não foi indiciado qualquer autor mediato ou instigador, apesar de se admitir, sem contestação, que o grupo "atuou sempre em bloco, com alguma organização, presumindo que tais atos foram premeditados, barrando claramente a tentativa de fuga dos atletas para o exterior.”
Percorrendo alguns ensinamentos em matéria de direito penal, sabe-se que não há autoria sem execução. Também se sabe que a autoria se conexiona com a execução. Mas autor não é apenas aquele que executa o facto por si mesmo. Autor é também, com efeito, aquele que executa o facto por intermédio de outrem. É a autoria mediata.
É sabido que o artigo 26° do Código Penal (CP) adotou um conceito extensivo de autor. É no fundo, um "participante principal" (Cfr. Cavaleiro Ferreira - Lições - 1- 4.ª ed. 473). Para a teoria do domínio do facto, é autor quem, de acordo com o significado do seu contributo, governa o curso do facto ou como significativamente foi já decidido no STJ "segundo a importância da sua contribuição efetiva, comparte o domínio do decurso do facto” (CJ/STJ - 22.11.2006¬XlV, 3/230).
"A autoria mediata é uma forma de autoria e, como a autoria imediata, caracteriza-se pela existência do domínio do facto. É autor mediato [homem de trás] quem realiza o tipo penal de maneira que para a execução da ação típica se serve de outrem [homem de diante] como "instrumento"" - JESCHECK- Tratado de Direito Penal - Versão espanhola - págs. 604).

Será que a figura da autoria mediata se confunde com a instigação? Refere a doutrina que é enganadora a aparência de uma pretensa uniformidade de tratamento entre as duas figuras quando subsumidas ao dispositivo do artigo 26° do, CP. É que [no art.º 26° do Código Penal a instigação e a autoria mediata estão estruturadas em termos diversos: segundo este preceito, a punição de quem "determinar outra pessoa à prática do facto" depende de existir "execução ou começo de execução", mas para a punição de quem "executar o facto ( ... ) por intermédio de outrem", não se exige esse requisito, nem qualquer outro equivalente.

Esta diversidade de estrutura da autoria mediata e de instigação é particularmente relevante numa ordem jurídica que, como a nossa, não incrimina a tentativa de instigação, pois daí decorre que o agente mediato, se o seu comportamento for tratado como instigação, ficará impune sempre que não chegar a haver execução ou começo de execução, por parte do instigado.

Diferentemente, nos casos de autoria mediata, o regime resultante do artigo 26° do CP não exige para a responsabilidade do autor mediato, o início da execução pelo autor imediato, não excluindo, assim, a possibilidade de o "homem de trás" ser punido por tentativa a partir de um momento anterior àquele em que o autor imediato começa a praticar actos - execução do tipo legal de crime.

Parece correto, portanto, afirmar que, também no direito penal português vigente, quando o autor imediato não chega a praticar actos de execução do facto tipicamente ilícito, o âmbito de punição do autor mediato pode ser mais amplo (pode começar mais cedo) do que o da punição do instigador (vide Maria da Conceição Valdágua - in Figura Central, Aliciamento, e Autoria Mediata - Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues -1- pgs. 932/934).

Este alargamento conceitual de autoria, como tal há muito rececionado no nosso código penal tem a sua explicação no desenvolvimento contemporâneo da sociedade humana, sendo que as inerentes atividades multifacetadas que se desenvolveram no seu seio vieram determinar um olhar mais consentâneo com os problemas gerados.

Assim, os comportamentos antissociais, algo estruturados, que constituem a atuação delituosa no chamado "crime por encomenda", parecem poder subsumir-se aos últimos acontecimentos ilícitos e criminais perpetrados na Academia de Alcochete.

Recorda-se, de novo, e em jeito de conclusão, que a lei portuguesa acolheu, no artigo 26.º do Código Penal, um conceito extensivo de autor, de sorte que no referido normativo encontram-se previstas duas formas de autoria singular (imediata e mediata) e duas outras formas de autoria plural (coautoria e instigação).

Não se deixe impune, “o homem de trás”…!